quinta-feira, 20 de dezembro de 2012


(Imagem de Gérard Castello-Lopes)
Na verdade, não se pode avaliar uma emissão de linguagem sem tomar em consideração o grau de omnisciência de quem a profere. Todo o emissor linguístico é um narrador e, como tal, tem um grau de conhecimento sobre os contextos que está a abordar na sua partilha verbal que é diferente do grau de conhecimento tanto do seu recetor como dos "personagens" referidos na emissão de linguagem.

Na variação do exemplo do "Zé Alguém" referida no post anterior, não há qualquer violação da Lei de Leibniz. De novo, há que tomar em consideração a contribuição da elipse para o exercício da linguagem. Para que o enunciado se tornasse indubitavelmente claro, teria de ser formulado da seguinte maneira:

"Zé é a pessoa para a qual foi escrita a canção Zé Alguém. / Diogo sabe que a pessoa para a qual foi escrita a canção Zé Alguém é um ilustre desconhecido do grande público. / Então, apesar de Diogo poder não conhecer Zé, ele sabe que a pessoa para a qual foi escrita canção Zé Alguém, pessoa essa que eu, emissor, sei que é Zé, essa pessoa é um ilustre desconhecido do grande público."

Ora, ninguém fala assim na chamada "vida real". Mas, para que os filósofos não sigam o destino de escaravelhos arrastando problemas-que-não-o-são (e que por não o serem mas serem tomados como sendo acabam por provocar avalanches de merda), é preciso revelar, em cada emissão de linguagem, tudo aquilo que, apesar de relegado para um fundo elíptico, é claro para todo e qualquer recetor maduro dessa emissão de linguagem.
Mas auscultemos agora uma variação deste exemplo:
"Zé e a pessoa para a qual foi escrita a canção Zé Alguém. / Diogo sabe que a pessoa para a qual foi escrita a canção Zé Alguém é um ilustre desconhecido do grande público. / Então, Diogo sabe que Zé é um ilustre desconhecido do grande público."

Ora, neste caso, nada no enunciado das duas premissas permite defender que Diogo saiba que Zé é a tal pessoa para a qual foi escrita a canção Zé Alguém (na verdade, Diogo faz parte do "grande público"), o que faz com a conclusão possa ser inválida. Haverá aqui uma violação da Lei de Leibniz?
Exemplo:
"Zé é a pessoa para a qual foi escrita a canção Zé Alguém. / A pessoa para a qual foi escrita a canção Zé Alguém é um ilustre desconhecido do grande público.  / Então, Zé é um ilustre desconhecido do grande público."

(Neste caso, x equivale a "Zé", e y equivale a "A pessoa para a qual foi escrita a canção Zé Alguém")

Segundo a chamada Lei de Leibniz, central no estudo das questões de identidade, se x=y, então x tem todas as propriedades que y tenha, e vice-versa.

domingo, 25 de novembro de 2012


(Imagem de Enzo Penna)
Exemplo:
Podemos, caso não tenhamos nada de melhor para fazer, usar a frase "Tudo é provocado por uma causa" como argumento para a existência de Deus. Simplificando muitíssimo: se é indesmentível que tudo é provocado por uma causa, então há uma causa que provoca tudo; essa causa é Deus. Este Argumento Cosmológico, absolutamente falacioso, não precisa de ser combatido por raciocínios subtilíssimos a propósito da ambiguidade dos "quantificadores" linguísticos. Basta pensarmos que, na simplificação que expusemos, há duas palavras em falta que demonstram que as duas frases não são simétricas ou especulares uma em relação à outra. Preenchamos as elipses e a falácia fica à mostra: "Se é indesmentível que tudo é provocado por uma causa específica, então há uma causa única que provoca tudo." Não, não é desta que Deus existe.
Exemplo:
Quando duas frases (ou muito especificamente duas premissas de um raciocínio) têm entre elas um vínculo de conjunção, só podemos aceitar como verdadeira a totalidade desse enunciado se as suas duas partes forem verdadeiras (basta uma ser falsa, e o enunciado tem de ser denunciado como falso). Nesse sentido, é indiferente pronunciar "a&b" ou "b&a" ("Luís é moreno e usa barba" ou "Luís usa barba e é moreno") para auferir o valor de verdade da formulação.

Ora, nem sempre essa possibilidade de mutação da ordem lógica é aceitável. Se eu disser "João respirou fundo e pegou no seu instrumento musical", estou a atribuir uma sucessão cronológica ao desenrolar das duas ações, e por isso tal frase não equivale a "João pegou no seu instrumento musical e respirou fundo", frase que inverte a ordem temporal dos eventos.

Na verdade, neste caso, o que acontece é que falta a palavra "depois" ao enunciado para ele poder ser compreensível (simplesmente tal palavra é automaticamente intuída pelos utilizadores da língua que estão por demais habituados a essa convenção). Assim, "João respirou fundo e depois pegou no seu instrumento musical" já não nos aparece como uma conjunção vulgar. A ser uma conjunção, teria de ser uma espécie de conjunção temporal. Ora, como se sabe, o tempo não volta para trás.
A tomada de consciência do elemento elíptico pode ser um bom ponto de partida para a resolução de um problema de pensamento aparentemente complexo (ou, pelo menos, para o apressar da constatação de que tal problema nunca existiu).

sábado, 17 de novembro de 2012


(Imagem de Ara Güler)
Para os utilizadores da linguagem, a presença do elemento elíptico pode ser mais ou menos consciente, mais ou menos convencionada, mais ou menos funcional.
Já num sentido mais técnico (e mais restrito), outra expressão do mesmo fenómeno é a conversational implicature teorizada por Paul Grice: se, num dia de praia canicular, Simão quiser proteger a sua pele da inclemência do sol e, em conversa sobre o assunto, Nuno lhe disser que "há um creme na mochila", não é preciso que este sublinhe que se trata de um protetor solar e não de um outro tipo de creme qualquer (incluindo o doce com o mesmo nome) para que Simão entenda a mensagem com absoluta clareza. Como usualmente pretendemos ser relevantes na nossa comunicação, certas inferências a partir das emissões de linguagem resultam menos do que foi efetivamente dito que do simples facto de ter sido dito num contexto determinado.
De forma espontânea (e saudavelmente desajeitada), os falantes referem-se a esta omnipresença da elipse quando confessam que "se chega a um ponto em que só as palavras não são suficientes" ou que "a comunicação se faz menos por palavras do que por olhares, sorrisos...".
Não entendemos aqui elipse no sentido estrito de não-dito automaticamente subentendível pelo destinatário de uma emissão de linguagem, mas enquanto ocultação genérica de informação cuja relevância poderá por vezes só ser descortinada por via do pensamento.
Toda a emissão de linguagem é constituída por uma componente de informação e por uma componente de elipse.