segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013



(Imagem de Michael Kenna)
O Homem é copernicanamente polémico e ptolomaicamente semântico.
A verdade aparente (troncos que parecem apenas pousados sobre a neve), por um processo de gestão alegórica, pode ser um corpo articulando-se em verdade espiritual.

Mas logo vem a verdade científica desdizer as evidências físicas e metafísicas dos sentidos (as raízes, que não se vêem, mas se sabe que existem sob a neve).

Acontece que, em termos de rigor de sentido, a verdade aparente era mais profunda do que a verdade científica: a nossa ligação a uma terra natal pode ser cortada (e aqui, as duas verdades unem-se numa só: o corte é possível mas não prescinde de esforço violento).
AS ÁRVORES

"Porque somos como troncos de árvores na neve. Aparentemente, estão apenas pousados na neve e com um simples empurrão conseguir-se-ia afastá-los. Não, não é possível porque estão firmemente ligados ao solo. Mas reparem que até isto é apenas aparente."

Franz Kafka (tradução: José Maria Vieira Mendes)

sábado, 16 de fevereiro de 2013






(Imagem de John Milisenda)
Quando se diz que o raio que atacou a cúpula da Basílica de São Pedro, no Vaticano é uma metáfora da renúncia do Papa Bento XVI ao seu cargo, apesar da definição poder estar correta do ponto de vista técnico, seria talvez mais útil batizar esse fenómeno meteorológico como uma alegoria dos eventos políticos da Igreja (uma alegoria concentrada, uma narrativa reduzida a uma ação única, mas uma alegoria: a instrumentalização de um dado concreto para construir um sentido abstrato).

Apesar da história da poesia estar repleta de uma criatividade metafórica que está muito mais próxima da evidência erótica (a cópula entre dois seres) ou da demiurgia pura (a invenção de quimeras) do que da exemplaridade de um sentido único, a metáfora parece ter adquirido a má fama da falta de imediatez e da grosseria da moralidade.

Ora, a sexualidade metafórica, se tem óbvias consequências de sentido, tende a torná-las mais libertadoras do que opressoras (o que raramente acontece no calculismo alegórico). Por outro lado, não existe verdadeiramente sentido literal (acreditar nisso parece-nos uma prova de infantilidade): duas palavras colocadas uma ao lado da outra relacionam-se em multiplicação e não em adição. Todo o exercício da linguagem tem como destino o dizer-se mais ou menos do que as palavras escolhidas para dizer. A miríade de elipses que acompanham cada enunciado aí está para provar a fraude da literalidade e a latência inexpurgável da alegoria em todos os nossos atos de pensamento.
Todo o sentido é alegórico, na medida em que a sua narrativa (enquanto conjunto de passos fazendo o pensamento transitar do passado para o futuro) rearranja um conjunto de seres concretos numa abstração coerente.

A alegoria, enquanto género artístico, tem a sua própria história (a cultura alemã parece tê-la dominado de forma exemplar, como se pode verificar pelo cinema expressionista ou pela literatura de Kafka). Mas a arte realista que o século XIX impulsionou não é menos alegórica pelo facto de praticar uma estética da concretização (ao contrário de "Sunrise" de Murnau, o romance realista não fala da Aldeia, da Cidade, do Homem, da Mulher, mas de Alvaiázere, de Leiria, do Sr. Aristides Rocha e da Dona Hermengarda da Encarnação). O que acontece é que os indícios de sentido nele se encontram razoavelmente ocultados pela proliferação do detalhe. Mas mantêm-se tão ativos como aqueles que a alegoria em sentido estrito oferece com maior nudez.

É certo que o filosofar pode ter por base outras filosofias, outros sistemas de abstração. No entanto, nenhum pensamento pode atingir algum grau de validade se não for pensamento sobre as coisas no seu estado pré-pensado, ou seja, se não for uma nova reflexão sobre os dados concretos da vida.
Caminhava eu, um dia destes, na Praça da Batalha, e enumerava para mim mesmo tudo o que ia observando: um luxuoso e muito cuidado teatro oitocentista, bancos de jardim presos a um chão de pedra, um cinema fechado, uma loja popular debitando fado em altos brados, um sem-abrigo dormindo no chão, uma igreja orgulhosa... Concluí: estas coisas não têm nenhuma relação entre si a não ser o facto de partilharem o mesmo espaço.

No entanto, a não-relação entre tais coisas é tão radical que, se nos mantivéssemos na esfera da coisificação, não precisaria sequer de ser levantada enquanto problema. Ou seja, só mesmo um animal de sentido, como o humano exclusivamente é, precisa de formular a hipótese de não haver sentido nenhum. E essa hipótese é, obviamente, uma hipótese de sentido: o sentido de não o haver.

Podem espernear o que quiserem todos aqueles que pretendem celebrar o absurdo ou o vazio: o ser humano tem o sentido por condição e dele não consegue fugir (ainda que o possa ilustrar com belas e ambiciosas demonstrações de nonsense).

Se alguma beleza podemos assacar à cidade do Porto, ela terá certamente um teor baudelairiano. Não enquanto tradução exata do imaginário do autor de "Les fleurs du mal", mas na relação que a urbe propõe entre o indício de inquestionável decadência e um paradoxal prazer estético. Terá sido essa a motivação para que o seu governador ainda presente tenha cultivado uma política da ruína?